Boa tarde.

Lucubrações imagéticas.

Escolhi esse título porque descobri que 'lucubração' significava trabalho mental noturno, e desde então adotei essa palavra como minha, pois minha atividade é noturna, mais especificamente na madrugada, que é muito produtiva.

Estranho hoje, falar de bordado, que foi dito pelo Augustin como prática feminina, sendo eu homem, mas quando fui apresentado ao bordado fiquei encantado na mesma hora, já que eu sempre gostei de linhas, porém soltas. Era hora de prendê-las.

Então, tudo começa por uma oficina de bordado contemporâneo a que eu não compareço. Mas uma amiga disse que depois me ensinaria, e eu, superansioso, vou e compro agulha e linha. Na espera de aprender os pontos, começo a bordar uma camisa que tinha uma logo na altura do peito. Eu comecei bordar apenas linhas soltas para escondê-la. Foi intuitivo. Mas ficou bonito.

Até que uma vez resolvi fazer outra, mas não ficou igual, pois nunca sai igual! Desisti então de bordar duas vezes o mesmo desenho.

Depois que minha amiga me ensinou três pontos que ela tinha aprendido, fui praticar o ponto correntinha. Resolvi bordar um cartão de aniversário para um amigo com a frase da artista Frida Kahlo. E eu percebi que eu detestava aquele ponto. Ele não rendia! Eu bordava uma palavra da frase, cansava, mas queria bordar outra. Nada rendia! Nunca mais bordei com o ponto correntinha. Depois disso, bordei na minha mão, fui bordando. Até perceber que para mim bordar sempre foi balsâmico. Enquanto bordava, pensava na vida, e em tudo que faz parte dela.


Porque vocês sabem que no bordado existem muitas artesãs que começam a fazer coisas porque ou elas passaram por problemas e começam a resolver isso fazendo o bordado, ou então, elas pioram como eu, não consigo terminar e isso me estressa.

Todo mundo fala “nossa, bordar me relaxa”, mas na verdade, bordar me estressa porque eu não termino e eu quero terminar, e esse processo todo para mim é o mais divertido; então, quando eu penso na frase que eu fiz, eu não penso na frase, que a frase pouco importa, o mais interessante é o que eu estou passando para fazer essa frase.


Eu começava a desenhar e desses desenhos eu passava para o pano para ver como ficavam. E era sempre um desenho meu que eu fazia ou um texto que eu escrevia. E eu vou tentar contar isso tudo em forma de imagem.

Quão Leve e Pesada é a Bailarina é um fragmento de um texto meu que se tornou o primeiro bordado mesmo que eu fiz, que é uma bailarina que eu desenhei depois que tinha escrito o texto. E que não tem ponto definido. Lembra pontos conhecidos, as pessoas falam “nossa, mas esse ponto é tão difícil”, e eu falo “nossa, que legal, porque eu não sei como é que faz”.

De repente, eu descobri que os pontos são feitos, eles são catalogados, mas na verdade é a forma que vai me trazer o ponto, e não o ponto que vai trazer a forma. Por isso é que as minhas formas parecem pontos que já existem, porque a forma me levou àquele ponto ali.

Outra coisa que eu pensava era o seguinte: eu fazia algumas coisas que não tinham utilidade. Eu bordava na mão e depois desfazia e minha mão ficava toda vermelha; e eu dava os meus bordados de presente para as pessoas. Eu ficava naquela coisa e olhava para eles e falava “nossa, está muito legal”, e no outro dia não me interessava mais porque eu não tinha pensado necessariamente naquele desenho. Eu tinha curtido o bordado enquanto eu bordava.

Eu sempre gostei do avesso e ontem eu descobri que um bom ponto cruz se vê pelo avesso, e o avesso é muito bonito, não mais bonito que o direito mas eu gosto muito. Eu pensava que também não queria fazer um objeto que seja só o lado avesso porque eu acho o direito bonito. E como eu faço uma coisa que não é utilitária, que não é um pano de prato, que não é nada, eu pensei que isso pode ser algo que se pendura e que você pode ver pelos dois lados, e assim eu começo a usar o bastidor, que é o elemento de fixar o tecido, como moldura, porque é simples, prático, barato.


As coisas vão fluindo, por isso que o processo é interessante. Eu, quando vejo uma imagem dos meus bordados, ainda acho bonito, mas a escolha dos elementos vai acontecer de uma maneira tão intuitiva que eu não pensava em fazer isso, mas de repente eu vi que deixar uma linha solta poderia ser bom e chegava nesses elementos, como esse tecido que é de cortina, que é transparente, fino, translúcido.

E aí a Carla, que tem a Banca, vê a bailarina e fala “nossa, Esdras, que lindo!”. Eu falei “obrigado, e agora o que eu faço com isso? Pensei em ficar bordando, bordando, bordando e dando para os outros? De repente está todo mundo com bordado meu e eu não fiz nada. Vou tentar vender”. Só que a bailarina vem de um dia em que eu estava triste, porque a bailarina é um ser triste. Mas num dia em que eu estava superfeliz, comecei a bordar esse elemento que é a Amelie, uma personagem de um filme.


E depois que ela vira um bordado ela desencadeia um tanto de outras coisas, e essa talvez seja a que tenha um dos significados mais fortes em toda a produção, porque ela é um ícone, uma personagem de um filme francês. De repente, essa personagem, como Elvis Presley, Madona, vira um ícone de um grupo de pessoas. E, por isso, tem ímã, tem caneca, tem camisa, tem bordado, tem um bilhão de coisas. E alguém virou para mim e disse que ficou muito bonito e pergunta “mas a Amelie? Por que a Amelie?”. E eu disse “eu não sei, estava querendo bordar, olhei para a caixa da fita que tinha lá em casa e decidi que ia bordar.

E foi tão insano que ela é toda em ponto cheio, e quem borda sabe o tanto que ponto cheio não rende. E ele foi tão frenético que eu bordei durante uma tarde, assistindo televisão, mesmo desfazendo e refazendo o cabelo várias vezes. O meu humor sempre influenciou muito na minha produção. Este bordado fiz numa tarde, porque estava mais agitado, enquanto um outro demorei dois meses para fazê-lo. E ele possui linhas simples, finas. Bordei apenas o contorno. Porém exigiu muito de mim.

E foi tão insano que ela é toda em ponto cheio, e quem borda sabe o tanto que ponto cheio não rende. E este foi tão frenético que eu bordei durante uma tarde, assistindo televisão, mesmo desfazendo e refazendo o cabelo várias vezes.

E eu fiquei pensando, primeiro eu fiz um desenho, bordei, ficou legal, vou reproduzir. E não, não consigo, não consigo reproduzir, porque o processo é mais interessante, o processo é único. Eu acho que o produto deve ser pensado no processo, isso é muito importante, porque o processo não se muda, é imutável, mas o produto se melhora, mas o processo não. Então do processo da Amelie podiam surgir várias outras coisas.


Assim eu entro numa outra dúvida, “quanto você paga por um quadro bordado de um ícone, que um monte de gente já tem? Qual o valor que você coloca no seu objeto de artesanato? O que as pessoas vão pagar, compensa?”. Mas você também não vai ficar no prejuízo porque afinal de contas muitos artesãos querem vender e viver daquilo. E a lucubração não se paga, aí vai ser um preço exorbitante.


E eu ficava nessa discussão do que eu vou fazer. E no meio dessa história toda rolou um convite para fazer uma exposição desses bordados. Eu fui fazer os desenhos que são muitos específicos e eu bordei alguns antes do convite para a exposição e outros depois. Assim, ela - a exposição - não tem uma linha pensada, mas ela tem uma linha de raciocínio pensada por mim, no meu jeito de fazer objetos, de desenhar e bordar e observar os desenhos.

Ao fazer e falar de beleza, da Amelie Poulain que é um ícone, lembrei de um artista da pop arte, Andy Warhol, que criava ícones de ícones, e eu decidi por criar os meus próprios ícones.

Eu bordo então as cenas de um filme que eu gosto, que me lembra algum lugar,


uma personagem de um livro que eu li no ensino médio e achei sensacional. Eu estava bordando ícones, e qual o preço que você paga pelo meu ícone?


Vale lembrar também de uma pessoa que me convidou para participar da oficina a que eu não fui; que ia me ensinar a bordar, e não me ensinou, e que eu fiz a bailarina e ela falou que legal, e de como meu humor influencia no meu trabalho, e também da plataforma.

E vem a vontade de espetar o quê? A mão, o tecido... As vezes eu nem espeto, eu desenho. penso no bordado e começo a fazer onde seriam os pontos, isso pra mim já é um bordado!


Uma foto de criança da minha mãe na escola que eu bordo porque estava com saudade e eu bordo porque é um ícone meu.


Nessa história do desejo de espetar as coisas, eu queria fazer um certo movimento, saiu isso, e as pessoas perguntaram “isso é você?”, e eu disse “agora é”.


O último bordado feito pra exposição. Produzido na tarde anterior.


Sabem aquele bicho que dá no pé e que vai fazendo um caminho? Este é o meu bicho geográfico. O legal de bordar na mão é que depois você puxa e vai fazendo tec, tec, tec, tec na pele. E a minha mão então virou outra plataforma.


Já este trabalho foi um presente que eu fiz que eu chamei de Lorena, sua avó e Leonilson. É um presente que eu fiz para a Lorena. Leonilson é um outro artista que já morreu, que bordava e que ela me apresentou quando eu comecei a bordar. É um traço simples, que a avó dela sempre fazia para ela, de um homem com cabeça de animal. E eu achei superintrigante e ela desenhou no meu caderno. Usei um tecido que é antiderrapante de tapete que, além de ser bonito, parece xerox. Enfim, é uma outra plataforma, é um outro traço. Na verdade é um traço que é da avó da Lorena, que desenhou para mim e eu bordei e ficou diferente do que eu faço. E eu dei para ela, eu fiz de presente.


E este é a última coisa que eu fiz, que foi para uma exposição que teve no último sábado. Eu já tenho muita vontade de colocar meus bordados em outras coisas, em outras plataformas.


E eu decidi bordar em raio x. Mas eu não quero mais a linha, eu quero agora a violência do bordado, eu quero a agulhada. E surgem estes objetos de luz que mostram o furo e não necessariamente a cor da linha. Não interessa o desenho, o que me interessava era ressaltar onde eu coloquei a agulha. E eu acabo me divertindo, pois é divertido porque o que é gostoso no raio x é furá-lo.

E é isso. É uma produção recente de um ano e meio de diversão, é sério, e eu acho que é possível sair um pouco daquele bordado que a gente conhece e cair em outras plataformas. Meu bordado é só isso, cair em outras possibilidades, ir para outra coisa que não precisa ser o que eu mostrei e que não precisa de ser o que a gente já faz. Tem que mudar, tem que fazer pois não dá só para imaginar, tem que mudar.

Obrigado.